RUMO AO PLANETA GARGALHADA

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sobre perfil da Cia. de Comédia
Os Melhores do Mundo,
para a Coleção Brasilienses

domingo, 8 de abril de 2012

Só sucesso

Chulos, grosseiros etc
POR DAFNE SAMPAIO
FOTOS: CLAUS LEHMANN
A bagunça do camarim parece domada, tranqüila, adulta. Frutas, salgados e água mineral estão intocados em uma mesa de canto e a televisão está sintonizada em um jogo de bocha para atletas com deficiência física. Não faz nem cinco minutos e a primeira piada surge rápida e incorreta. Assim é o camarim da Cia. Os Melhores do Mundo, sexteto de comediantes formado em Brasília que passou por São Paulo para apresentar, com casa cheia a duas sessões por dia, a peça Hermanoteu na Terra de Godah. Do lado de fora, uma fila começa a se formar duas horas antes do espetáculo.
Os melhores do mundoAgora, no presente momento, quatro dos seis integrantes dão as caras. Todos estão beirando a casa dos 40 anos. O goiano Jovane Nunes, o mais falante, o carioca Victor Leal e os brasilienses Ricardo Pipo e Adriana Nunes, a única mulher do grupo. O marido de Adriana, o carioca Adriano Siri, está tirando um cochilo em outro cômodo da casa de shows, enquanto o brasiliense Welder Rodrigues, quando aparece, mantém-se calado. Logo ele, um dos mais conhecidos do grupo por participações no programa Zorra Total e por interpretar Joseph Klimber, esquete mais conhecido do espetáculo Notícias Populares, que chegou ao DVD por uma multinacional e vendeu surpreendentes 25 mil cópias. “É que falo muita m****, por isso sou treinado para não dar entrevistas”, confidencia gaiatamente antes de dar no pé mais uma vez. Então, podemos começar?
O grupo surgiu em 1995, confere? “É, estamos com essa formação desde abril de 1995. 21 de abril de 1995. Mas eu, o Pipo e o Welder já trabalhávamos em outras companhias”, explica Adriana, ao que Jovane interrompe e dispara: “Sabe que esse dia é feriado em Brasília?”. Todos caem na gargalhada. Aliás, todos são responsáveis por tudo nas produções do grupo, desde o texto até o figurino, passando pela sonoplastia, músicas, cenários e até a arte gráfica dos cartazes. “Quando o Siri entrou a gente logo percebeu que ia dar certo. Nossas opiniões batiam, bem como o que cada um acha e quer do humor, fora o talento de um que complementa o do outro. No começo, a gente lotava casas de cento e poucos lugares em temporadas de três ou quatro semanas. No meio do caminho já preparávamos a próxima peça e assim por diante. Teve ano que fizemos nove”, relebra Jovane e Pipo completa que “sem querer criamos rapidamente um grande repertório, e que é patrimônio nosso”.
Os melhores do mundoEle tem razão. O repertório da Cia. já possui cerca de 30 peças, sendo que metade foi escrita entre os anos de 1995 e 98. Atualmente, em turnês nacionais, apresentam apenas duas: Notícias Populares e Hermanoteu. A última que escreveram foi América, em 2004. “Mas a gente parou de fazer peça nova, pelo menos por enquanto. Temos que usar o nosso repertório. Aconteceu também que algumas peças foram canibalizadas. Piadas boas de peças antigas, que a gente não monta mais ou não gosta, foram colocadas em outras. Aprendemos isso com a VASP que fazia aquele negócio com as peças reutilizadas de aviões antigos”, e Jovane ri da própria piada.
Então, do nada, aparece uma garrafa de uísque. “Agora essa matéria sai!”. É Jovane puxando mais um coro de gargalhadas. “Olha, é que sempre fomos ambiciosos. Queremos mostrar nossas peças em todas as capitais brasileiras, criar peças para montar no exterior, usar mais a internet e fazer filmes. Com isso queremos marcar nosso nome na história da comédia brasileira. Queremos virar referência”. Modéstias à parte, o sexteto planeja transformar Hermanoteu em longa, principalmente após a experiência com o curta À Espera da Morte, produção caprichada feita em 2004, totalmente falada em russo e disponível na internet. Aliás, falando na rede. “Sempre deixamos filmar nossos espetáculos porque esses vídeos na internet são um auxílio gigantesco de divulgação”, diz Jovane, o homem que já foi frentista de posto de gasolina, ajudante de pedreiro e beneficiador de arroz até passar no vestibular de Artes Cênicas sem nunca ter visto uma peça. “Por exemplo, fizemos o esquete do Joseph Klimber no Programa do Jô e esse vídeo já foi visto umas 20 milhões de vezes no YouTube. Na época, a gente já viajava o Brasil, mas depois passamos de teatros para casas de shows”, agora quem fala é Victor, que também é baterista, formou-se em Administração de Empresas e já foi dono de açougue.
A partir de 2001, quando a Cia. saiu do eixo Brasília-Rio de Janeiro-São Paulo para ganhar o Brasil, os números foram aumentando exponencialmente até chegar a 300 comunidades no Orkut, recordes de venda no Canecão e aos 220 mil espectadores de suas peças no ano de 2008. Por todo sucesso, o sexteto sempre estranhou um certo silêncio a seu respeito. “A gente gosta da imprensa”, diz Victor abafando o próprio riso, “mas é que vivemos à margem. Não somos cult. Não somos a Banda Calypso. Ninguém reconhece a gente na rua e, ao mesmo tempo, lotamos qualquer casa de show ou teatro em todo o país”. Coincidência ou não, o contra-regra chega calmamente com uma arma e mostra para alguém. “Aquilo é objeto de cena, viu? Fique calmo”, tranqüiliza um debochado Jovane. “Tá tudo bem, viu? É a imprensa. Daqui a pouco a gente chama você de novo”, e o contra-regra some rapidamente. Do outro lado da sala, Pipo, que já foi secretário de uma escola de alfabetização e locutor de rádio, faz exercícios vocais, preparando a garganta e a voz para interpretar Hermanoteu, uma paródia bem brasileira de Jesus Cristo. “Nós somos os famosos não-famosos”, conclui Jovane. Falta menos de uma hora para a peça começar.
Os melhores do mundoAbre parênteses para um caso revelador da dificuldade que instituições, públicas e privadas, têm de rir de si mesmas na Pátria Mãe Gentil. Com a palavra, Victor. “Fomos processados por uma faculdade privada de São Paulo porque uma vez no esquete Assalto a Gramática, que é Notícias Populares, o bandido falava assim: ‘Eu quero um carro blindado, a imprensa reunida e um advogado que não seja formado pela…’, tal faculdade. O mais engraçado é que no dia da audiência, o nosso advogado era formado pela tal faculdade e o deles era formado por uma outra, mais tradicional. Adivinha? O nosso perdeu!”. Para não ter que pagar uma quantia que nem imaginavam existir optaram por um acordo. Estão proibidos de mencionar o nome da faculdade e de outras 80 instituições. Fecha parênteses, enquanto Siri, originalmente formado em Arquitetura, aparece na porta do camarim com uma indisfarçável cara amassada.
Pouco depois quem surge é o produtor da Cia. chamando para a sessão de fotos. Todos vão ao palco e se enfiam entre as cortinas, enquanto canções do Padre Zezinho, escolhidas pelo próprio grupo como música ambiente, e os garçons aguardam a abertura das portas da casa. Vários cliques depois confessam orgulhosos que Bárbara Heliodora, respeitada crítica de teatro, os chamou de “chulos, grosseiros e politicamente incorretos”. Ainda querem colocar a frase como recomendação para algum futuro cartaz do grupo. “A gente respeita os clássicos, mas fazemos peças que tenham a ver ou que façam sentido para o nosso público. E o nosso texto fala deles”, e Jovane abre caminho para refletir sobre o duro ofício de comediante. Após a bola lançada para a grande área, Victor cabeceia: “As pessoas riem de si próprias através da gente. Somos a válvula de escape da sociedade. Levamos torta na cara pelo nosso público”.
Em espetáculos que combinam observação do cotidiano, crítica social e improviso, a Cia. Os Melhores do Mundo gosta de elencar uma ampla variedade de referências. Estão lá, piada após piada, figuras como Mel Brooks, Casseta & Planeta, Irmãos Marx, Woody Allen, Monty Python, Trapalhões (“Na época que o Didi tinha costeleta”, relembra Pipo com carinho) e o maior de todos, Chico Anísio (“Ele representa muito para gente, é o maior humorista brasileiro de todos os tempos e não é a toa que faz a voz de Deus em Hermanoteu”, é Pipo novamente).
Os melhores do mundoAlheio a gêneros ou subgêneros humorísticos, Pipo chama para si a responsabilidade e assume que para o grupo “existem apenas dois tipos de comédia: a que é engraçada e a que não é”. Assim mesmo, sem rodeios, e faltando cerca de meia hora para o espetáculo ter início. Nada parece estudado nas falas do grupo e a paixão pelo teatro também soa intensa e sincera. “A gente sempre pensou no teatro pelo teatro e não como um meio para se chegar à televisão. O trabalho lá é que serve como um meio de chamar mais gente pro teatro, de popularizar nossas peças”, resume Victor para completar na mesma toada que “na TV é mais difícil fazer piada porque tem mais limites, tem departamento jurídico, porque vive de publicidade e ninguém quer desagradar ninguém. A gente entende isso. Agora, no teatro a gente faz a piada que quer, do jeito que quer e na hora que quiser”.
Essa liberdade os deixa particularmente suscetíveis ao patrulhamento do politicamente correto. “Isso mata a comédia porque, afinal de contas, não existe humor a favor de coisa alguma”, sentencia Jovane. Mas o que acha a menina do grupo? Aliás, Adriana, o que uma mulher como você faz entre esses sujeitos? “Foi acontecendo desse jeito. Mas não estou em todos as peças porque nesse mesmo período tive três filhos. O único problema de ser a mulher do grupo é que ouço muita barbaridade. Eles até aliviam quando vêem que estou chegando. Mas ultimamente nem isso mais acontece. Ah, e nunca tive problemas com o tipo de humor que a gente faz”. Adriana, que já trabalhou em shoppings e bancos, orgulha-se dos laços de amizade, do respeito e do humor rápido que o grupo criou e cultivou em solo brasiliense para exportação nacional. Faltam dez minutos e todos estão vestidos, maquiados e com os microfones ligados. Um pouco antes do contra-regra avisar que está na hora, Adriana é acometida por um daqueles lampejos de mãe. “Desculpa, acho que a gente falou muito, né? É que é tão raro a gente dar entrevista. É verdade! Não estamos acostumados”, e sorri ligeiramente envergonhada. “Olha, ninguém sabe o trabalho que dá”, desabafa antes de sair pela porta rumo ao palco. Não faz nem cinco minutos e já se ouvem as primeiras gargalhadas. A noite é uma comédia e está apenas começando.

HERMANOTEU

No princípio era o riso
Corinthians, Osama Bin Laden e o Velho Testamento são alguns dos ingredientes de Hermanoteu na Terra de Godah, umas das peças mais populares do repertório da Cia. Os Melhores do MundoEm um tempo e numa terra distantes, um sujeito pacato e boa praça recebe a dura missão de guiar seu povo à Terra Prometida. Pensou em Moisés? Não foi o que passou pela cabeça do pessoal da Cia. Os Melhores do Mundo. “A versão original de Hermanoteu na Terra de Godah é de 1995 e nasceu daquela nossa necessidade de fazer uma peça para entrar no lugar de outra. Ficamos pensando em várias coisas e chegamos no Velho Testamento, que é engraçado pra caramba”, explicou Jovane Nunes, um dos integrantes do grupo. Filas se formam muito antes do espetáculo começar na curta temporada paulistana e, acima da paródia bíblica, o público espera as associações humorísticas com o dia-a-dia. Nessa toada entram referências a times de futebol locais (Corinthians e São Paulo, no caso), Osama Bin Laden, pontos-chave da cidade, programas de TV, a Dança do Quadrado e o que mais vier pela frente. Em 2000, a peça ganhou a cara pela qual é hoje conhecida nos quatro cantos do país e na internet.

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